Ontem em conversa com o meu filho de três anos e meio ele
falou-me de ovos já não me lembro porquê. Eu disse que não os comíamos e ele respondeu: se os ovos
fosse vegans nós já os podíamos comer.
Este frase deixou-me a pensar numa questão que já não é nova
para mim mas que me deixa sempre algumas dúvidas: quando é a altura certa para
explicar todas as implicações dos produtos animais a uma criança?
Para ele, alguma coisa ser ou não vegan, não tem o mesmo significado
que para nós, como é óbvio. Ele compreende e aceita perfeitamente que nós só
comemos comida que seja vegan mas não percebe o que está por trás dessa escolha e fico
sempre na dúvida até que ponto lho devo explicar.
Para ele, ser vegan faz parte da
identidade da família e é algo que ele percebe que está relacionado com a
alimentação mas, na verdade, ele ainda não sabe exactamente o que distingue uma
comida vegan de uma não vegan. ~
Uma criança desta idade precisa de se identificar sobretudo com a família, por isso, por enquanto, para ele é bastante pacifico que
nós façamos algumas escolhas diferentes das dos outros e isso chega bem para que
nunca tenhamos tido problemas em lado nenhum quando alguém come produtos
animais à frente dele, mesmo que sejam gelados ou doces de chocolate, coisas de
que gosta bastante. Basta dizermos que não é vegan e ele aceita perfeitamente
porque, para uma criança desta idade, se tudo estiver bem, é fácil
identificar-se totalmente com as escolhas da família e confiar nos pais. Na
verdade é muito mais fácil neste caso do que se houvesse alguma alergia, por
exemplo - a algum produto que ele não pudesse comer e nós continuássemos a consumir - porque é uma escolha da família, ele sente que isso faz parte da nossa
identidade e está completamente confortável com isso.
Mas, isto não significa que ele saiba exactamente o que
está por trás do conceito de veganismo.
Neste caso, senti que lhe devia
explicar um pouco mais e optei por lhe explicar apenas que ser vegan implica
que não comemos nada que venha dos animais e os ovos vêm sempre. Assim, como já
lhe expliquei que as vacas têm leite, sim, mas que esse leite é só para os
filhotes delas e não temos o direito de o tirar. Com estas explicações acho
que lhe transmito o que para mim é o mais importante: que não temos o direito de comer o que
quer que seja que venha dos animais porque eles não existem para a nossa
conveniência.
Acho que, por vezes, podemos cair no erro
de falar cedo demais às crianças no sofrimento que implicam as escolhas do
consumo de produtos animais. E pergunto-me se é justo sobrecarregá-las com esse
peso e se isso não acabará por ter o efeito contrário daquele que desejamos. Se sobrecarregamos uma criança com esta responsabilidade de conhecer todo o sofrimento que implica a indústria dos produtos animais antes dela ter alguma capacidade de lidar com isso, pode acontecer justamente o contrário do que queríamos que acontecesse: se aquilo é um peso grande demais para a criança carregar, se ela fica preocupada e impressionada com algo que, sendo tão pequena, não tem capacidade de mudar, então a sua única forma de lidar com isso poderá ser mesmo a de bloquear essas emoções, o que significa ignorar tudo o que estiver associado a elas e ficar como que dessensibilizada para esse mesmo sofrimento.
Qualquer adulto que tenha tomado consciência do que está por trás da indústria animal e que tenha tomado a decisão de deixar de contribuir para isto sabe que não foi um processo fácil, tomar contacto com essa realidade. A incapacidade de lidar com essa realidade e de aceitar que ela existe é justamente uma das coisas que faz com que muitas pessoas reajam mal sempre que alguém as confronta com essa mesma realidade. É um processo que pode ser doloroso e até traumatizante. Então pergunto-me muitas vezes quando será o momento certo para permitir que o meu filho tome contacto com isto? E a resposta que me tem surgido sempre é que preciso de o deixar crescer mais para que isso aconteça porque quero que ele tenha o direito de continuar a ser criança.
As crianças
que comem carne não têm nenhuma noção do sofrimento dos animais que lhes aparecem no prato, a maior
parte das vezes nem chegam a fazer a ligação entre os animais que conhecem e
aquilo que comem. Então se as crianças que comem carne não carregam esse
peso, acho que as outras também não precisam de o carregar, pelo menos nos seus primeiros anos de vida, e enquanto não houver nenhuma razão para o fazerem.
Acredito que o sofrimento do
mundo deve ser deixado para os adultos porque são estes que têm capacidade de lidar com isso também a responsabilidade de o eliminar. As crianças devem continuar
crianças, não acho que tenhamos de lhes esconder tudo, mas também não acredito
que lhes devamos contar exactamente como tudo se passa, da mesma forma que não
as protegemos de outras realidades terríveis como as guerras ou coisas do
género.
Claro que, se algum dia ele insistir em comer algum produto de origem animal terei que tentar explicar-lhe, sempre de forma adaptada à sua idade, o que isso implica e o que estará por trás disso. Mas espero não ter de o fazer cedo demais e espero saber fazê-lo quando for a altura certa.
Outra coisa que pode acontecer quando explicamos a crianças pequenas o que implica o consumo dos produtos animais é que elas podem ficar a pensar que, nesse caso, então todas as pessoas que os consomem são más o que, no meu caso e na maior parte dos casos, incluiria pessoas da família e de quem ele gosta bastante. Porque uma criança não tem a mesma capacidade que os adultos de perceber que o mundo não é só preto e branco. Uma criança não consegue perceber que o facto de uma pessoa ser cúmplice e contribuir para algo que está errado não a torna necessariamente má, porque existe toda uma franja de cinzento nas emoções humanas que, até para nós adultos, nem sempre é fácil de entender.
Por outro lado, as crianças mais pequenas
também ainda não têm uma verdadeira capacidade de entender esse sofrimento,
ainda não percebem verdadeiramente o que é a morte nem o que isso implica e, quando são muito pequenas nem têm grande capacidade de sentir empatia. Por
isso penso que a melhor coisa que posso fazer, para já, é simplesmente transmitir-lhe os valores de respeito pela vida dos animais e fazê-lo perceber que eles têm direito à sua própria existência e que não há nada que nos dê a nós o direito de usar o que quer que seja que venha de algum animal.
Na verdade isto prende-se com uma
discussão que surge até muitas vezes em grupos de vegans e de vegetarianos: se
eu tiver galinhas e as tratar bem posso comer os ovos delas? E para mim é muito
simples e é isso que eu quero que o meu filho aprenda antes de tudo o mais:
mesmo que não haja nenhum sofrimento envolvido é errado pensar que temos o
direito de usar o que quer que seja que venha de um animal. Primeiro porque,
hoje em dia e com tudo o que temos ao nosso dispor não precisamos de nenhum
produto animal para absolutamente nada. E, se não precisamos então é apenas uma
questão de conveniência, de hábito, de preguiça até em procurar alternativas ou
de incapacidade para deixar algo que nos dá algum prazer e não acho que estas sejam justificações suficientes.
Sempre que aproveitamos algo
que vem de um animal, como o ovo de uma galinha, aquilo que estamos a fazer
é a partir do princípio que aquele
animal é um ser inferior e que temos o direito de nos sentir donos dele, já que
até lhe damos casa e comida e festinhas de vez em quando e, por isso, temos
também o direito de aproveitar o que quisermos quando quisermos. E isto não
quer dizer que somos pessoas com menos princípios ou más ou que tratamos mal os
animais mas quer dizer que não lhes damos os mesmos direitos que damos às outras
pessoas, quer dizer que não os vemos da mesma forma e, para mim, isso é não é
certo e é justamente o que está na base de tudo o resto que acontece de mal.
Muitas pessoas que têm animais e
até os tratam bem ficam ofendidas quando as comparamos aos donos de escravos.
Mas sempre que oiço isto não consigo deixar de me lembrar da cabana do Pai
Tomás, um livro que retrata muito bem a escravatura. Neste livro, o personagem
principal, o Pai Tomás era um escravo que vivia com um dono bom, que o tratava
muito melhor do que aquilo que era costume, lhe dava uma casa boa, boas roupas,
boas condições de trabalho, etc. Nessa casa os donos gostavam dos escravo e os escravos gostavam dos donos, sentiam-nos quase como parte da família e seriam incapazes de os
maltratar ou fazer algo que os fizesse sofrer. Até que um dia o senhor fica na
falência e perante a alternativa de vender o Pai Tomás que, justamente por ter
sido sempre tão bem tratado, era o seu escravo mais valioso porque era
saudável, forte, bem educado, inteligente, sendo capaz até de ler e
escrever coisa rara para um escravo ou de ter que vender quase todos os outros
para se poder sustentar. Claro que, entre escolher o mal de todos ou o mal de
um, foi o Pai Tomás que foi vendido e foi afastado da sua casa, da sua família
e de tudo o que conhecia até então para dar início a toda uma outra vida de sofrimentos e maus-tratos. Aqui o que importa perceber é que estes
donos nunca fizeram isto de ânimo leve, não eram más pessoas, gostavam genuinamente dos escravos e foi uma decisão
penosa e muito difícil de tomar. Aliás o que eles sentiram foi que era uma decisão necessária justamente para salvar os outros todos. A verdade é que, por muito que gostassem dos seus escravos, estes donos, no fundo, viam-nos exactamente como todas as outras pessoas dessa época: como seres inferiores que, apesar de todo o amor e afecto que tinham por eles, não tinham exactamente os mesmos direitos que os brancos. Não porque os achassem maus ou indignos, simplesmente, porque os achavam diferentes, por muito absurdo que hoje nos pareça, nesta altura, as pessoas acreditavam que os escravos eram mesmo diferentes, que tinham outra consciência que os colocava num estatuto inferior ao dos brancos.
Então a única forma de acabar
como isto foi fazer as pessoas perceberem que os escravos eram iguaizinhos a
elas e que tinham de ter exactamente os mesmos direitos. Só quando isto foi aceite - o que não aconteceu de um dia para o outro, é claro - é que as coisas puderam mudar de verdade.
E é isto que eu
acredito que precisamos de fazer com os animais: perceber que, mesmo que sejam
diferentes de nós, têm de ter os mesmos direitos e privilégios e isso implica
não usarmos nada que venha deles porque, enquanto o fizermos, estará sempre presente a visão utilitária que nos diz que temos o direito de usar alguns produtos animais. Acontece que, a partir do momento em que nos sentimos no direito de usar o que quer que seja que venha de um animal apenas para a nossa conveniência, então é uma linha muito ténue que fica traçada entre a nossa capacidade de reconhecermos a individualidade e os direitos daquele animal e o sentir que podemos dispor dele à nossa vontade.
E, mais do que qualquer outra
coisa é mesmo isto que quero transmitir ao meu filho: que os animais podem ser diferentes de nós em algumas coisas, mas que têm de ser iguais nos direitos e que essa diferença não nos dá o direito de acreditar que podemos usá-los ou aproveitar o que sai dos seus corpos para o que quer que seja, mesmo que isso não implique violência ou maus tratos.
Parabéns, beleza!
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