sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Aprender com empatia

Recentemente soube que os alunos do segundo e terceiro ciclo andam a mexer, nas aulas, em cadáveres de peixe e corações de porco. E acabei de saber também que, na escola do meu filho - de que gosto bastante - as crianças do quarto ano andaram a mexer nas entranhas de um animal que, segundo me disseram, deveria ser um porco.

Sou a favor de um ensino mais activo, em que as crianças possam mexer e sentir e em que não tenham de aprender só com os livros mas a questão é que isso precisa de ter limites. Principalmente quando falamos de crianças. Se, numa faculdade de medicina ou veterinária, os alunos têm obrigatoriamente de ver e de mexer em cadáveres para treinar determinadas aptidões, isso não é propriamente o caso de um adolescente e muito menos será o caso de uma criança do quarto ano.

Quando se leva o cadáver de um animal para dentro de uma sala de aula, com crianças que não estão propriamente a estudar medicina ou veterinária, que mensagem é que estamos a transmitir a essas crianças ou jovens?
Que a vida daquele animal vale tão pouco que até pode ser usado apenas para exemplificar coisas que podiam perfeitamente ser aprendidas com recurso a algum tipo de modelo de plástico, livros, filmes, etc.

E é claro que é sempre muito mais motivador e gratificante para as crianças aprenderem com o mundo real, quando podem fazê-lo, em vez dos livros. Mas isto não pode ser válido para tudo. Não vamos ensinar a um jovem o que é uma guerra, ou o que foram os campos de concentração, por exemplo, fazendo-o passar por essas experiências.

O que é que implica levar o corpo de um animal morto para dentro de uma sala de aula em que se está apenas a estudar anatomia?

Em primeiro lugar há todo o desrespeito para com o animal morto que está assim a ser usado e manipulado numa sala de aula. Depois a mensagem de que a vida daquele animal não tem qualquer valor e a sua morte não merece o mínimo de dignidade.

Algumas pessoas dirão que o corpo do bicho já estava no talho e que, de qualquer modo, seria comprado e comido. Mas, apesar de tudo, é um acto diferente comprar um animal para comer quando acreditamos que precisamos disso para sobreviver ou usá-lo assim, numa sala de aula, apenas para que os alunos possam aprender de maneira diferente.

Nesse caso poderíamos dizer que nos hospitais também haverá muitos cadáveres de pessoas que, de qualquer maneira já estariam mortas, mas ninguém se atreveria a levar um cadáver de uma pessoa para uma sala de aula do quarto ano ou mesmo do ensino secundário. E porquê? Porque sentimos que as pessoas nos merecem mais respeito que os bichos, mesmo depois de mortas.

Mas para além destas questões éticas fundamentais e da falta de dignidade com que tratamos os animais há que pensar também no efeito que isso terá nas crianças.

Por um lado, há aqui a questão do respeito pela sensibilidade de cada um. Que não tem de ser toda igual. Nem todas as crianças, ou adultos, têm a mesma sensibilidade. E não têm de ter. E ainda bem que não têm. Nem todas a pessoas seriam capazes de ser médicas, de mexer em feridas, de abrir corpos, de lidar com sangue. Na verdade nenhum médico aprende a fazer isso assim de ânimo leve, precisa de haver algum treino que passa, de certo modo, por um certo grau de dessensibilização para essas experiências.

A neurociência descobriu há pouco tempo que todos nós temos aquilo a que se chamou neurónios espelho. Esta é uma parte do nosso cérebro que parece estar desenhada para reflectir aquilo que vemos nos outros. São neurónios que disparam apenas por vermos as outras pessoas desempenharem algumas acções. Acredita-se que estes neurónios podem estar na base da empatia, que passa pela nossa capacidade de nos colocarmos no lugar do outro, pela capacidade de sentir aquilo que que os outros sentem. Então estes neurónios parecem desempenhar um papel essencial para a vida em sociedade.

É através da empatia que aprendermos a importar-nos com as outras pessoas. A empatia é o que nos permite criar uma ligação, estabelecer uma relação. A empatia é que nos permite querer cuidar dos outros e importarmos-nos com os seus sentimentos. Quem não sente empatia não se importa com as outras pessoas, ou animais. Quando não conseguimos sentir empatia com alguém não conseguimos importar-nos com aquilo que a outra pessoa sente. É o caso dos chamados psicopatas, pessoas cuja experiência de vida nunca os ensinou a importarem-se com os sentimentos dos outros, provavelmente porque nunca sentirem que ninguém se importasse com os seus em primeiro lugar.

É mais fácil sentir empatia quando existe algum grau de identificação com o outro. É mais fácil sentirmos empatia por pessoas com quem nos identificamos, pessoas do mesmo país, ou com a mesma profissão, da mesma idade, mesmo género, etc., porque mais facilmente conseguimos colocar-nos na sua pele.

No entanto é muito importante que sejamos capazes de alargar o nosso círculo de empatia. Porque se só somos capazes de sentir empatia por aqueles que são iguais a nós, então, é meio caminho andado para criarmos exclusão e conflito. E essa é uma das razões para haverem tantas guerras: o facto de acharmos que determinados povos são tão diferentes de nós que já nem conseguimos colocar-nos no lugar deles, pelo menos não o suficiente para querermos a todo o custo impedir o seu sofrimento.

Por isso é que também nem sempre é fácil sentir empatia com os animais, porque nos parecem tão distantes e diferentes que temos alguma dificuldade em nos colocar no lugar deles. Principalmente quando falamos de animais que não vemos diariamente e com quem não estamos habituados a conviver. Apesar de tudo é, geralmente, mais fácil sentir empatia por um gato ou cão porque estamos habituados a conviver com estes animais e é-nos mais fácil ou mais rápido construir um mapa mental daquilo que eles estarão a pensar ou a sentir. Por isso, de certeza, que também não passaria pela cabeça de nenhum destes professores levar o cadáver de um cão ou gato para ser estudado na aula.

Por isso é tão importante percebermos que os porcos, vacas e galinhas são animais tão inteligentes e sensíveis como os cães ou os gatos. São animais que têm exactamente a mesma capacidade de sentir que os animais que temos em casa e merecem exactamente o mesmo respeito e a mesma consideração. 

Ultimamente tem-se falado, um pouco por todo o mundo, no 70º aniversário da libertação do campo de concentração de Auschwitz, e os campos de concentração só aconteceram justamente porque foi possível que as pessoas deixassem de sentir empatia para com aqueles que lá estavam. Porque, de algum modo, se tornou possível que passassem a acreditar que elas eram tão diferentes de si que não era imediata essa tendência para se colocarem na sua pele. Este extermínio que aconteceu nos campos nazis só foi possível porque as pessoas se dessensibilizaram para o sofrimento dos outros. Os guardas destes campos não eram todos psicopatas perigosos, eram pessoas normais que o sistema e a propaganda nazi levaram a acreditar que eram diferentes dos prisioneiros desse campo. E tudo o que aconteceu nesses campos mostra como é tão perigosa essa perda de empatia. Mostra como pode ser tão grave o facto de só sermos capazes de sentir empatia por aqueles que acreditamos que são iguais a nós.

Ainda há pouco tempo li algumas declarações de um sobrevivente de um desses campos que dizia que aquilo que foi feito aos judeus (e não só) nessa altura, é exactamente igual ao que se faz aos animais hoje em dia. (ver aqui esse artigo)

E o que está na base disso é justamente a falta de empatia e a incapacidade de nos pormos no lugar dos animais que torturamos todos os dias neste mundo.

E essa capacidade de sentir empatia significa que ficamos impressionados ao ver um corpo, uma ferida, um pedaço de animal que sabemos que precisou de sofrer para estar ali. Porque temos um mecanismo inato que nos impede de gostar de ver sangue ou corpos, ou feridas. Ninguém fica indiferente ao cadáver de uma pessoa, porque não seríamos capazes de nos dissociar tão facilmente daquilo que ela sentiria.

Há quem diga que esse é um dos perigos dos jogos e filmes violentos: criar um mecanismo de dessensibilização com o sofrimento e com a violência. Então, se não queremos criar filhos insensíveis, pergunto, porque raio é que lhes pomos cadáveres na mão? Porque é que esperamos que eles desliguem essa capacidade de sentir empatia apenas em nome da aprendizagem?! Porque é que achamos que deverá ser natural que eles tenham de contrariar os seus instintos mais básicos para aprender?

Existem tantas outras formas de ensinar as crianças de maneira diferente e divertida sem precisarmos que elas se desliguem deste modo dos seus sentimentos mais básicos e mais nobres que, quando penso nisto, não posso deixar de me lembrar de uns desenhos animados que havia quando eu era criança e que se chamavam Era uma Vez a Vida. Ainda hoje, quando penso em hemoglobina, me lembro sempre daqueles bonequinhos divertidos que andavam de um lado para o outro com as bolinhas de oxigénio nas costas. Para mim, que não sou médica e não preciso de conhecer bem por dentro o corpo de ninguém, esses desenhos animados serviram-me perfeitamente para compreender o funcionamento do corpo humano. E, honestamente, hoje em dia, acho bem mais simpático ter na minha cabeça a imagem desses bonecos simpáticos do que a imagem de um pobre bicho esquartejado em cima da mesa de uma sala de aula qualquer. 

Sem comentários:

Enviar um comentário