segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Cozinhar um mundo saudável

Durante as férias de Natal tive de cozinhar em casa de familiares e, por isso, tive de dividir a cozinha com cadáveres que eram preparados ao mesmo tempo que preparávamos a nossa refeição vegan. Se já é desagradável comer com cadáveres na mesa, é ainda mais difícil ver esses pedaços de cadáver assim crus, em cima da bancada a serem manipulados por pessoas que se esquecem que aquele pedaço de carne um dia foi um ser vivo, com consciência, capaz de sentir dor e com direitos que, infelizmente, nunca foram respeitados. E, ao ver mães a preparar esses pedaços de cadáver para os filhos não pude deixar de me perguntar: como é que se pode cozinhar sangue com amor?


Porque cozinhar é sempre um acto de amor. A alimentação está ligada ás nossas primeiras experiências de sermos cuidados por alguém. Alimentar um filho é muito mais do que cuidar apenas do seu corpo. Quando amamentamos um bebé estamos a dar-lhe oportunidade de sentir o corpo da mãe, de ouvir os seus batimentos cardíacos, de sentir o seu cheiro e isto, para um bebé, é a experiência mais parecida que ele pode ter com estar dentro da barriga da mãe outra vez. Por isso não é de estranhar que, desde pequenos, a alimentação tenha sempre alguma ligação com o nosso lado mais afectivo e emocional. Então não é de estranhar que a comida esteja associada a tantas coisas no nosso inconsciente. E, quando uma mãe cozinha para um filho, quase sempre fá-lo como um acto de amor, de cuidado e de carinho. Mas, como é que se pode ter um gesto de amor quando estamos a dar sangue, morte e violência aos nossos filhos? Quando lhes pomos restos de seres vivos no prato, que foram mal tratados e abusados a sua vida inteira, seres que nunca foram olhados com o mínimo de respeito ou de afecto, seres que nasceram apenas única e exclusivamente para o proveito das pessoas que os maltrataram e desrespeitaram desde o seu primeiro instante de vida, como é que podemos por toda essa violência no prato de uma criança e achar que estamos a cuidar dela?!

Apenas vivendo completamente dissociados da nossa consciência e dos nossos sentimentos podemos fazer isso. Temos que nos forçar a esquecer que já fomos crianças também, temos de nos forçar a esquecer que o nosso primeiro instinto, em tempos, foi gostar dos animais e não matá-los e comê-los. Temos que nos dissociar da nossa consciência ao ponto de nos esquecermos da nossa parte carinhosa, capaz de se ligar e de respeitar os animais que pomos no prato. Acredito que, se a grande maioria das pessoas não estivesse tão habituada a ignorar a sua consciência, o mundo seria muito mais vegan.

Isto é demonstrado também por filmes como o Cowspiracy, que tem sido bastante falado ultimamente, pelo menos nas redes sociais. Este documentário demonstra claramente que a indústria da pecuária é a maior responsável pela eminente destruição do planeta e de todos os seus habitats. Um dos exemplos citados no documentário é o da quantidade de água necessária para produzir um simples hamburguer de 450g que seria o equivalente a tomar um duche durante dois meses! Este é só um exemplo que demonstra bem o efeito devastador e o elevadíssimo consumo de recursos que requer o facto de andarmos a alimentar animais com grãos e plantas que precisam de ser plantados, para depois serem colhidos e engordarem esses animais que, por sua vez, irão alimentar apenas um número reduzido de pessoas, muito inferior ao que seria alimentado caso estas plantas fossem usadas para alimentar directamente as pessoas.

Então para além de uma completa destruição dos recursos e do planeta a indústria da carne contribui também para a fome em muitos países do terceiro mundo que são usados justamente para plantar alimento para esse gado que depois será vendido para os países mais ricos, enquanto os seus cidadãos passam fome.

Então, hoje em dia, sempre que vejo alguém a dar um bife ou hamburguer a um filho não posso deixar de pensar que aquela pessoa não tem a mínima consciência daquilo que está a fazer. Porque não só está a alimentar o seu filho com sangue e com violência mas, ainda por cima, está a contribuir fortemente para a destruição do mundo que ele irá habitar no futuro.

Então, se queremos alimentar verdadeiramente os nossos filhos precisamos mesmo de tomar consciência daquilo que lhes pomos no prato. Precisamos de saber que não podemos cozinhar sangue com amor e carinho, mas também precisamos de saber que cada um desses pedaços de cadáver que lhes pomos no prato é uma contribuição que damos para destruir o mundo deles. É uma contribuição que damos para destruir o mundo deles hoje, através da violência envolvida na morte da vida dos seres vivos que lhes pomos no prato, através da fome que outras crianças passam por causa dos campos que são usados para alimentar esses seres vivos e através da destruição das florestas, dos solos, dos oceanos e de toda a poluição e consumo de recursos que um simples pedaço de carne provoca.

Então é mesmo preciso que toda a gente tome consciência de que comer carne é um acto violento por todos estes motivos e não só. É um acto de violência e de desrespeito contra a vida dos animais mas, hoje em dia, também contra a vida de todos nós.

Dar um passo em direcção ao veganismo é assumir que não vivemos sozinhos no mundo. É assumir que precisamos de cuidar de nós, dos nossos filhos mas também do planeta que lhes vamos deixar. Adoptar um estilo de vida vegan, em alimentação e não só - reduzindo ao máximo o uso de produtos que envolvam o uso e sofrimento de animais - é admitir que não somos melhores que os animais só porque, aparentemente, somos mais inteligentes, é admitir que não temos o direito de destruir o mundo em que viverão os nossos filhos e netos e admitir que temos obrigação de pensar de uma forma verdadeiramente global.

Muitas vezes, temos tendência para pensar que os nossos actos não contam. Muitas pessoas, quando são confrontadas com os factos e com a eminente destruição do planeta e da vida têm tendência para se defender pensando que isso não deverá ser bem assim, ou que elas sozinhas não podem mudar grande coisa. Mas precisamos urgentemente de assumir que cada um de nós conta. Precisamos de ter coragem para mudar e para assumir responsabilidade pelas nossas acções, sem ficar à espera que seja o resto do mundo a mudar primeiro. Precisamos de nos lembrar que não estamos sozinhos no mundo, precisamos de ser capazes de ver mais longe do que o nosso próprio umbigo se queremos que os nossos filhos cresçam num mundo saudável. Pelo estado das coisas hoje em dia, precisamos mesmo de ser capazes de ver para além do nosso umbigo se queremos que os nossos filhos ou netos tenham mundo para crescer.

Porque pode parecer mais fácil não pensar nas coisas, pode parecer mais não as enfrentar, pode parecer mais fácil continuar a fazer o que sempre fizemos sem nos preocuparmos muito. Mas, na verdade, não o é. Porque só podemos continuar a fingir que não se passa nada se nos distanciarmos de nós mesmos, da nossa consciência e da nossa verdadeira natureza. Porque ninguém quer viver num mundo cheio de violência, de fome e de poluição. Se a grande maioria das pessoas tivesse que ver a vida e a morte dos animais que consome acredito que deixaria de os comer muito mais depressa. Então o veganismo é um caminho que nos permite sentir muito mais ligados ao animais, sim, mas também à natureza, a nós próprios e às outras pessoas.

Muitos estudos mostram que a solidão é um dos piores sentimentos que as pessoas podem ter. Há estudos que mostram que o facto da pessoa se sentir sozinha pode diminuir até 50% a sua esperança de vida. Os bebés, desde o primeiro dia em que nascem, procuram estabelecer relações. Observações de crianças que viveram em orfanatos - sobretudo na antiga europa de leste - onde tinham todas as condições de higiene e de alimentação mas não lhes era permitido estabelecer ligações com ninguém, nem sequer umas com as outras (por medo de contágios) tinham uma taxa de morte muito superior à das crianças que viviam em casa, muitas vezes até em condições mais precárias. Isto demonstra claramente que o homem é um animal social, com uma grande necessidade de pertença e de se sentir parte de um grupo, como o demonstram também vários estudos que mostram que pertencer a um grupo religioso, ou associativo podem aumentar muito o grau de satisfação com a vida.

Então, tomar a decisão de seguir um estilo de vida vegan significa abraçar esta ideia de que somos todos parte de um todo. De que todos vivemos neste planeta e todos temos o direito de viver da melhor forma possível. E isto pode realmente ser uma forma de vivermos todos mais felizes e em paz.

E uma criança que cresce sabendo que não tem o direito de usar os animais apenas para sua conveniência é uma criança que cresce num mundo de respeito mas também de partilha. É uma criança que cresce sabendo que não são apenas os seus desejos que contam. E, na verdade, é isto que todos queremos que os nossos filhos aprendam: que não estão sozinhos no mundo, que não podem pensar apenas em si, que existem outras pessoas e outros seres com os mesmos direitos e que precisam de ser respeitados. E uma criança que cresce a saber respeitar os animais e o planeta é uma criança que cresce também a saber respeitar as pessoas.

Mas, sempre que um pai ou uma mãe põe um bife no prato de um filho aquilo que lhe diz é justamente o oposto: que existem seres inferiores, que podemos usá-los à nossa vontade, que não importa o seu sofrimento. Sempre que alguém põe um bife no prato de uma criança aquilo que lhe diz que é a violência até pode ser legítima desde que sirva os nossos interesses.
E, hoje em dia, no meu ponto de vista, sempre que uma mãe ou um pai põe um bife no prato de um filho, em última análise, aquilo que lhes diz é: não me importo com os animais ou com a natureza mas nem sequer me importo o suficiente contigo porque não estou disposto/a a fazer um esforço para te deixar um mundo melhor.

Então é muito simples se queremos realmente que os nossos filhos cresçam num mundo justo, bonito saudável e com relações mais harmoniosas entre todos, precisamos urgentemente de tomar coragem e de assumir de uma vez por todas a responsabilidade pelas nossas acções. E, se queremos que os nossos filhos cresçam a ser capazes de se importar com os outros e a respeitarem os animais mas também as pessoas e o planeta precisamos de começar por respeitá-los a eles e de não destruir o mundo que será deles com a nossa ignorância, com o nosso egoísmo e com a nossa incapacidade de agir.