sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Crescer com liberdade


Agora que começa a aproximar-se o Natal, com as típicas refeições em família que esta época implica uma das coisas que mais me começa a incomodar é a quantidade de doces que as pessoas comem com o uso de ingredientes animais. Porque até consigo compreender que alguém me diga que precisa de carne, peixe, leite ou ovos para viver e para se manter saudável - não concordo com esta afirmação, como é óbvio, mas compreendo que alguém a faça. Mas o que ninguém pode dizer é que precisa de um bolo de chocolate com chantilly para se manter saudável ou de um arroz doce para viver ou de qualquer outra sobremesa que tipicamente enche as mesas nesta altura.

Não consigo deixar de ficar chocada sempre que vejo alguém a fazer bolos cheios de ovos, ou leite ou a comer gelados carregados de leite e de natas, por exemplo. Porque que alguém acredite que precisa de carne ou leite para se manter saudável é muito diferente de acreditar que temos o direito de usar esses produtos apenas para fazer bolos, doces e todo o tipo de sobremesas que não fazem falta absolutamente nenhuma a ninguém.

Mas, na verdade, pensando bem isto faz todo o sentido dentro do sistema do carnismo, uma expressão cunhada por Melanie Joy. Esta psicóloga, professora e autora de livros e várias palestras em defesa do veganismo, criou esta expressão para designar um sistema que leva as pessoas a distanciarem-se cada vez mais das consequências dos seus hábitos - ao nível da alimentação e não só - e da forma como estes implicam o uso dos animais. Acredito que tem muito mérito a criação desta expressão e espero sinceramente que ela represente a capacidade que começamos a ter de perceber o que implicam as nossas escolhas. No tempo da escravatura a palavra racismo não existia, porque simplesmente se considerava ser uma realidade as pessoas de raça negra serem inferiores às brancas. No tempo em que as mulheres não tinham quaisquer direitos a expressão machismo também não existia porque se considerava que estas eram realmente seres inferiores.

É verdade que já existe a expressão especismo para designar a forma como descriminamos algumas espécies a favor de outras: por exemplo, no mundo ocidental poucas pessoas teriam coragem de comer um cão ou um gato mas a maior parte não hesita em comer vacas ou porcos. Mas a expressão carnista vai ainda mais longe para demonstrar que existe todo um sistema que, de forma automática ou quase inconsciente, procura preservar a ideia de que podemos fazer dos animais aquilo que quisermos e que eles existem apenas para satisfazer os nossos caprichos.

Porque não é nada mais que um capricho fazer um bolo de chocolate com quatro ou cinco ovos quando podemos perfeitamente fazer sem nenhum. Não é nada mais que um gesto de ignorância fazer um gelado com leite de vaca quando podemos usar leite de coco ou natas vegetais ou simplesmente fruta, por exemplo.

Mas este sistema do carnismo faz muito mais do que manter-nos na ignorância acerca das consequências dos nossos gestos. Este sistema afasta-nos de nós próprios, dos nossos sentimentos e da nossa natureza. 

Acredito numa evolução da espécie humana, acredito que o ser humano tem uma natureza boa e também acredito que, progressivamente, temos vindo a tornar-nos cada vez menos tolerantes com o sofrimento provocado pela nossa própria espécie. Basta pensar que na idade média, por exemplo, eram comuns rituais de tortura como o linchamento, o desmembramento, o enforcamento o queimar pessoas vivas na fogueira e tudo isto era feito em público, onde qualquer um podia assistir, incluindo até crianças. Hoje em dia, não passaria pela cabeça da grande maioria da população humana assistir a estes actos com a mesma naturalidade com que eram encarados nessa altura. É verdade que ainda existem sítios e países onde violência deste tipo continua a estar presente. É verdade que, em portugal, ainda temos touradas por exemplo, que são talvez um dos últimos resquícios deste tipo de barbaridade tornada um espectáculo público mas também é verdade que, apesar de tudo, esta vai começando a ser cada vez menos tolerada. E, na generalidade dos países ditos civilizados, acredito que caminhamos para sociedades cada vez menos violentas onde a violência gratuita é cada vez menos tolerada.

No seu livro, Melanie Joy, cita alguns estudos que chegaram à conclusão que o ser humano tem um desejo natural de não agredir, de não fazer o mal. Ela diz que se chegou à conclusão que, mesmo em cenários de guerra, a grande maioria dos soldados atira para falhar e não para acertar nos outros. Outro autor, Jonathan Haidt, estudioso da área da psicologia moral, no seu livro The Righteous Mind, também cita vários estudos que vão contra a famosa visão do gene egoísta e em que as pessoas parecem demonstrar essa propensão inata para colaborar umas com as outras sem se prejudicarem, mesmo em casos em que não se conhecem. Um desses estudos foi feito através da criação de um jogo que envolvia a distribuição de lucros e recompensas através da Internet e através do qual se concluiu que, mesmo em situações em que as pessoas não se conheciam nem se viam, a tendência geral era para distribuírem tudo de modo justo e igualitário umas pelas outras. Isto só mudava quando aparecia alguém no jogo que, propositadamente, começava a fazer as coisas funcionarem mais a seu favor. E aí, mesmo sem combinarem e sem o fazerem deliberadamente, todos os restantes participantes acabavam por se unir de forma a conseguirem castigar essa pessoa.

No seu livro Melanie Joy também fala das pesquisas que fez junto de pessoas que trabalhavam em matadouros e noutros sítios ligados à morte e ao uso de animais. Com estas pessoas Melanie Joy verificou que acontecia um de dois fenómenos: ou a pessoa ficava totalmente desligada dos seus afectos e se tornava numa pessoa fria, insensível e quase sádica capaz até de maltratar os animais de formas horríveis e sem grandes remorsos ou a pessoa acabava por ficar deprimida e com  muito mais tendência para recorrer a álcool, drogas, ou outro tipo de comportamento que a ajudasse de alguma forma a tentar recalcar todo o sofrimento que via diariamente nos animais com que tinha de lidar.

Então esta pesquisa demonstra que o ser humano, salvo raras excepções, não está preparado para lidar com esse sofrimento, porque não faz parte da sua natureza infligir dor a outros seres indefesos.

Por isso, para que esse sofrimento continue a existir, é preciso que o carnismo nos permita desligar daquilo que sentimos cada vez que vemos um animal nos nossos pratos. Precisamos de nos distanciar do que sentimos e do sofrimento que sabemos que foi provocado aquele animal para que acabasse ali na nossa mesa, para sermos capazes de o comer.

Acontece que, quando aprendemos a fazê-lo de forma automática, não é fácil voltarmos a dar espaço a esses sentimentos. Porque eles provocam mal-estar, desconforto e temos medo de não ser capazes de lidar com isso.

Muitas pessoas dizem que não são capazes de ver documentários como o earthlings, por exemplo, que retrata todo o sofrimento a que estão sujeitos os animais da indústria justamente porque não se sentem capazes de enfrentar todo esse sofrimento porque, depois de tantos anos a tentarem desligar essa parte de si próprias, pode ser muito assustador deixar que tudo volte assim, de repente. Até porque isso obriga-nos a admitir que, muitas das coisas que tomamos como certas, afinal estão mesmo profundamente incorrectas. E isto implica também aceitar que os nossos pais e professores e outras pessoas nos ensinaram coisas erradas e que, nós, muitas vezes as ensinámos também aos nossos filhos. E é precisa alguma coragem para enfrentarmos assim todas as nossas certezas e para por em causa toda a visão do mundo que fomos construindo.


Mas a verdade é que, se todo o mundo tivesse ignorado o sofrimento dos judeus e dos outros prisioneiros nos campos de concentração o mundo hoje seria um lugar muito diferente de certeza. E a verdade é que é ainda mais doloroso afastarmos-nos da nossa própria natureza. É ainda mais doloroso tentarmos esconder-nos dos nossos sentimentos e esquecermos-nos de quem somos.

E acredito que este sistema do carnismo está na base da violência contra os animais mas está também na base da violência contra nós próprios e contra os outros seres humanos. Porque quando somos ensinados, desde pequenos, a desligar-nos da nossa parte que sente, que se preocupa, que quer o bem dos outros seres, então não sabemos até que ponto é que nos estaremos a desligar não apenas dos animais mas de todos os outros seres vivos.

Há também estudos interessantes que mostram que mesmo bebés pequenos, de seis e nove meses, já reagem às injustiças. Estes bebés são colocados perante a imagem de uma figura que tenta subir uma superfície inclinada ao mesmo tempo que empurra um objecto. Pouco depois surge uma outra figura que a tenta ajudar e depois uma outra que a tenta prejudicar. No final estas figuras são disponibilizadas num tabuleiro para que a criança escolha com qual quer brincar. A grande maioria dos bebés prefere brincar com a figura que ajudou e ignora a que prejudicou. Isto demonstra que, mesmo bebés tão pequenos, já têm alguma noção do que é certo ou errado mas, acima de tudo, acredito que demonstra a nossa natureza de querer o bem dos outros seres.

Então se ensinamos a todas crianças que é bonito fazer o bem e não prejudicar ou magoar os outros devemos começar a ensiná-los que isto é válido também para os animais, para todos os animais, não apenas para os gatos e cães. E, se lhes ensinarmos isto acredito que lhes estamos a dar espaço para crescerem em harmonia com os outros mas também consigo próprias.

Porque dói cada vez que vejo alguém por um cadáver na mesa e comê-lo como se nada fosse, porque dói cada vez que vejo alguém despejar pacotes de leite para fazer um bolo sem se preocupar com o que está por trás disso, porque dói cada vez que vejo crianças e adolescentes a aprenderem a alimentar-se dos corpos de outros seres e dói ainda mais cada vez que o fazem na mesma mesa que eu. Sim, dói constatar diariamente esse sofrimento nas prateleiras dos supermercados, nas montras dessas lojas de cadáveres a que chamam talhos e até nos pés das pessoas que usam restos de outros seres como se ainda fôssemos homens primitivos que não têm ao seu dispor mais do que a pele dos animais que matam para se protegerem do frio. Tudo isto dói e dói ainda mais quando ainda por cima precisamos de nos calar porque nós é que somos extremistas e radicais e não devemos perturbar o repasto das outras pessoas. Mas, mais do que todas estas dores, dói mesmo, de verdade, quando nos distanciamos de nós à custa de querermos esquecer a nossa verdadeira natureza. Dói mesmo quando deixamos de dar valor aos nossos sentimentos apenas para não nos incomodarmos a nós e os outros. E, mais do que qualquer outra dor que sei que não vou poder evitar, não quero que o meu filho sinta a dor de não poder ouvir o seu coração, de não poder ser ele próprio de não poder estar em paz com a sua consciência.

Quero que o meu filho cresça com a paz, com a liberdade e com a tranquilidade de coração que vejo no vídeo destas crianças que aqui deixo. Porque, se para muitos o veganismo é um caminho de repressão porque temos de fazer escolhas e de nos privar de algo, para mim é um caminho de liberdade. De verdadeira liberdade porque nos permite estar em paz connosco, com a nossa consciência e com a natureza.
                                                 


                                                       Vídeo - crianças veganas 

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Educar para a diferença

Educar para a diferença é uma frase que está na moda mas que, na verdade, ainda não é muito posta em prática.

Sempre que falamos em alimentação vegan numa criança a primeira coisa que surge é o medo da diferença. Tal como muitos outros pais, quando o meu filho começou a escola, dei comigo a pensar que não queria que ele sofresse com as nossas opções, que não queria que ele se sentisse mal por ser diferente e não queria que os outros o fizessem sentir mal por ser diferente.

E este é o receio da grande maioria das pessoas quando sabem que uma criança tem uma alimentação ou um modo de vida que implica algumas diferenças em relação à maioria: a estigmatização da criança, o medo de não ser aceite, de não conseguir integrar-se, de ser rejeitada e incompreendida. 
Isto acontece porque, na verdade, vivemos numa sociedade que, apesar de todos os progressos que se vão fazendo, ainda lida muito mal com a diferença. Só há pouco tempo, por exemplo, é que começou a ser mais comum a integração de crianças com necessidades especiais nas turmas "normais". E isto ainda não é a regra em todas as escolas. Basta ver toda a polémica em torno da adopção de crianças por casais homossexuais, que ainda não somos capazes de aceitar enquanto sociedade, para se perceber que realmente lidamos muito mal com a diferença.

Principalmente quando essa diferença mexe com valores fundamentais da nossa visão do mundo. E o veganismo faz isso, porque, quando nos tornamos vegans, afirmamos que não precisamos de animais para viver, nem para nos vestirmos nem para nenhuma outra coisa em que eles são habitualmente usados. E afirmamos isso todos os dias simplesmente por escolhermos coisas diferentes para por no prato e coisas diferentes para vestirmos ou usarmos. E muitas pessoas sentem que, ao fazermos essas escolhas, de algum modo estamos a criticar as delas. E, como se costuma dizer, a melhor defesa é o ataque, o que quer dizer que, neste caso, muitas pessoas preferem atacar quem escolhe essa diferença como forma de não terem que entrar em contacto com o desconforto que sentem ao serem confrontadas com as suas opções.

Então, em primeiro lugar, é preciso perceber que o facto de não estarmos de acordo com algumas pessoas em certos aspectos, por muito importantes que estes sejam, não significa que estejamos a rejeitar essas pessoas.

Os meus valores e a minha consciência dizem-me que não é certo comer animais, que não é correcto usá-los para nosso benefício e conforto, muito menos da forma como são usados hoje em dia. Mas isto não significa que eu rejeite todas as pessoas que o fazem, não significa que, automaticamente, eu condene todas as pessoas que o fazem. Gostaria muito de viver num mundo onde todos pensassem da mesma forma que eu a respeito desta questão, gostaria mesmo muito que o meu filho pudesse crescer num mundo em que não fosse diariamente confrontado com a violência com que os animais são tratados. Mas, isto não significa que me sinta no direito de julgar as pessoas que não vêem as coisas deste modo, até porque eu própria já fui uma delas. Tenho esperança e quero acreditar que, no fundo, todas elas sabem que é importante mudar, no fundo de si próprias todas as pessoas sabem que é errado tratar os animais com a violência e o desrespeito com que os tratamos hoje em dia. Mas ainda não chegaram ao ponto em que são capazes de ser verdadeiras consigo próprias e com a sua consciência. E isto eu não tenho o direito de julgar, posso ter esperança que cheguem lá um dia e fazer o que estiver ao meu alcance para que esse dia chegue o mais depressa possível mas, até lá, isso não quer dizer que eu não as respeite, não as estime e não as possa aceitar tal como são.

Necessidade de pertença a um grupo

Na verdade todos nós temos uma necessidade intrínseca de pertencer a um grupo. Jonathan Haidt um psicólogo que se dedicou a estudar a área da psicologia moral afirma que o ser humano é parte macaco e parte abelha. Porque, em muitos aspectos, vivemos numa sociedade que só funciona enquanto todos colaborarmos e nos respeitarmos uns aos outros. Segundo este autor, nós não somos animais solitários, o ser humano, enquanto espécie, evoluiu como membro de um grupo e, por isso precisamos de nos sentir integrados e acolhidos para sermos felizes e nos sentirmos seguros e preenchidos. Para este psicólogo é esse um dos grandes benefícios da religião: dar-nos essa sensação de que pertencemos a algo maior do que nós mesmos, essa sensação que o nosso eu individual pode fazer parte de algo maior, mais profundo e mais intenso. É também isso que nos faz gostar de estar no estádio cheio de gente a torcer pela mesma equipa, ou num concerto por exemplo. Quando estamos no meio de uma multidão com objectivos comuns isso faz-nos esquecer temporariamente o nosso eu pequenino, sozinho e limitado e dá-nos uma sensação de sermos maiores, mais fortes, mais capazes e mais espaçosos. Por momentos cria-se a sensação de que somos o grupo todo e esse grupo é algo mais poderoso e intenso do que apenas a soma de todos os eus individuais que o constituem. Nas sociedades orientais, que são mais sacralizadas, está mais presente essa dimensão do grupo no dia a dia das pessoas. No ocidente valorizamos mais o indivíduo que o grupo e isso, por vezes, pode trazer-nos uma certa sensação de vazio por falta desse sentimento de pertença. 

Isto acontece mais facilmente quando estamos nestes grandes grupos mas também pode acontecer com uma prática de meditação, por exemplo. Alguns estudos mostram que as pessoas que vivem mais sozinhas têm mesmo uma esperança de vida significativamente mais reduzida. Isto demonstra a forma como precisamos realmente de nos sentir parte de um grupo, de uma comunidade.

Esta necessidade de pertença torna-se ainda mais presente na adolescência. Durante a infância, se tudo correr bem, o grupo a que a criança precisa de sentir que pertence são principalmente os seus pais, a sua família nuclear. É aqui que a criança começa a formar a sua identidade e é aqui que deve sentir-se primeiramente acolhida e aceite. Mas a adolescência é período em que a criança se prepara para formar uma identidade própria. A adolescência é a altura em que o jovem começa a ensaiar a sua partida para o mundo. É por isso que, nesta altura, os amigos começam a ter muito mais importância e o jovem começa a ter muito mais tendência para se querer vestir como os seus amigos, para querer fazer e gostar das mesmas coisas que eles. Porque esta é uma forma de o jovem sentir que pertence a uma comunidade, a um grupo, onde se sente acolhido e aceite. Então, nesta altura é muito natural que o jovem experimente desviar-se um pouco das regras da família, principalmente se estas forem muito diferentes das do grupo em que se insere. Porque é muito mais fácil sentir que pertencemos a um determinado grupo quando pensamos da mesma forma que as outras pessoas desse grupo, quando sabemos que temos a mesma visão do mundo.

Nesta altura é muito natural que o jovem queira experimentar vários papeis para ter a certeza daquele em que se insere. E, no caso de um jovem que tenha tido uma alimentação sempre vegetariana, nesta altura é possível que tenha alguma vontade de experimentar produtos animais. Até Gandhi, na sua biografia conta que passou por uma fase em que comia carne, às escondidas da sua mãe porque sabia que isto lhe daria um desgosto enorme se o soubesse. Mas, depois deste desvio e desta experiência, Gandhi descobriu porque é que era realmente importante ser vegetariano e, voltando aos valores fundamentais com que fora educado, percebeu que o respeito pelos animais era realmente uma parte importante do caminho da não-violência que começava a trilhar e a defender.

Então, tal como Gandhi experimentou comportamentos diferentes até encontrar aquele que estava de acordo com a sua verdadeira identidade, é natural que um jovem criado nesta sociedade como vegetariano tenha alguma necessidade de comer carne em algum momento da sua vida. Mas, se ficou lá a sementinha do respeito pela vida, também é muito natural que ele acabe por descobrir mais cedo ou mais tarde, que o seu papel na vida não precisa de passar pela violência contra os outros seres vivos.

Para isto também é importante que a relação com os pais tenha sido boa e que o jovem não tenha sentido que esta opção lhe foi simplesmente imposta sem diálogo e sem explicações. Uma criança que cresce com este sentimento de pertença à sua família é uma criança que se torna mais segura.
Quando esse sentimento de pertença não é preenchido em criança, é muito provável que acabemos por ter necessidade de o procurar noutros lados. E, se essa falta for muito grande, é mais fácil que a pessoa esteja disposta a sacrificar os seus valores e gostos individuais para se sentir integrada num determinado grupo. 

Uma criança que se sente respeitada e acolhida na sua família é uma criança que cresce a ser capaz de respeitar os outros e uma criança que está habituada a estar em contacto com os seus sentimentos e que está habituada a ver os seus sentimentos serem bem acolhidos e respeitados pelos pais também é uma criança que terá muito mais probabilidades de se manter fiel aos seus valores e à sua consciência.

Então para ter a coragem de ser diferente, o jovem tem que ter a certeza de quem é e tem que se sentir bem com esta sua identidade. E porque esta necessidade de pertença a um todo, a algo maior do que nós é real e importante também pode ser muito útil que a criança ou o jovem encontrem outras formas de sentir que pertencem a um grupo.

Por outro lado também pode ser útil treinarmos a nossa capacidade de perceber que, mesmo quando não estamos de acordo em alguns valores fundamentais, há muitas coisas que nos podem unir aos outros e há muitas formas de nos ligarmos às pessoas mesmo quando não partilham a nossa visão do mundo. Não precisamos de nos isolar e, se nós estivermos dispostos a mostrar que convivemos bem com a diferença, se o ensinarmos aos nossos filhos, será meio caminho andado para que os outros convivam bem connosco também.

E, na verdade, é  também muito importante ensinarmos aos nossos filhos que não precisamos todos de ver o mundo com as mesmas cores para podermos dar-nos bem e para nos respeitarmos. É importante que as crianças cresçam reconhecendo a sua própria necessidade de se integrarem e de pertencerem a um grupo mas sabendo também que não precisam de apagar a sua identidade individual para o fazerem. 

Afinal de contas esta intolerância e incapacidade de lidarmos com alguém cujos valores são muito diferentes dos nossos, juntamente com esta grande necessidade de pertença, estão na base de muitas guerras e vários problemas graves do nosso mundo.

Então acredito que darmos segurança aos nossos filhos e espaço para aprenderem a entrar em contacto com os seus sentimentos, mostrando-lhes que estes devem ser respeitados e acolhidos é o melhor caminho para criarmos adultos capazes de serem fieis aos seus valores e também de criarmos adultos capazes de respeitar todos os seres, percebendo que ser diferente não é ser melhor nem pior, é apenas ser diferente. Tal como os animais são diferentes das pessoas e não merecem menos respeito por isso.

O conformismo social 

Há alguns estudos interessantes que demonstram a forma como o ser humano tem necessidade de se sentir incluído. Nos anos 50, Asch fez umas experiências sobre conformismo social que ficaram célebres (ver aqui vídeo). Nestas experiências havia um sujeito que estava numa sala com várias pessoas sem saber que estas estavam combinadas com os investigadores. Estas pessoas viam uma série de linhas e tinham que dizer, em voz alta qual era que era igual à primeira. A resposta era óbvia mas tinha sido combinado que dariam todas a resposta errada. A grande maioria das pessoas que participou na experiência, começava por dar a resposta certa mas, ao fim de pouco tempo, acabava também por dar a resposta errada apenas para estar de acordo com os outros. Também acontecia que a pessoa se chegava mesmo a convencer mesmo que o grupo estava certo. Um aspecto interessante desta experiência é que, se a pessoa tivesse um aliado, que desse também a resposta certa, a grande maioria das pessoas já dava a resposta certa.

Uma outra experiência ainda mais extrema foi pensada por Stanley Migram e levada a cabo, com várias pessoas, de diferentes idades e estratos sociais, nos anos 60 e 70. Nesta experiência os voluntários estavam numa sala com um examinador enquanto viam através de um vidro uma terceira pessoa que acreditavam ser também um voluntário na experiência. Era-lhes dito que estavam a fazer uma experiência sobre a forma de aprendizagem da outra pessoa e iam fazer-lhe algumas perguntas. Cada vez que a pessoa errava a pergunta o analisador dizia ao voluntário para dar um choque à pessoa. E a voltagem dos choques ia aumentado sempre. Uma chocante maioria de 65% das pessoas, quando a ordem era dada pelo analisador, era capaz de dar choques até aos 450 voltes, uma voltagem que poderia provocar a morte das pessoas, mesmo quando a pessoa do outro lado gritava e se contorcia com dores. Ver aqui o vídeo

Estas eram pessoas normais e há quem use os resultados destas experiências para explicar o que aconteceu no tempo dos nazis, por exemplo, em que pessoas aparentemente normais foram capazes de cometer os actos mais hediondos. Porque estas experiências mostram como estamos dispostos a ignorar a nossa consciência e os nossos valores em nome deste sentimento de pertença e de integração. E mostram também que, se não estamos habituados a valorizar o que sentimos a ser responsáveis pelas nossas acções é muito mais mais fácil desresponsabilizarmos-nos dos nossos actos e fazermos coisas que podem prejudicar os outros, desde que sintamos que a culpa não é nossa.

Isto é também um dos aspectos que permite a manutenção daquilo a que Melanie Joy chama o sistema do carnismo. Porque nos permite sentir afastar a culpa de sabermos que somos todos os dias cúmplices do sofrimento de milhares de animais pelo mundo.

Então, para que isto não aconteça, é mesmo fundamental que sejamos capazes de ensinar os nossos filhos a serem responsáveis pelas suas escolhas, a estarem atentos aos seus sentimentos e a serem fieis à sua consciência e isto passa também pelo facto de serem capazes de ser diferentes. Porque é exactamente este tipo de conformismo que está na origem na perpetuação da forma como tratamos os animais hoje em dia. E é também este conformismo que está na origem de muitos problemas graves dos nossos dias.

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Sem açúcar com afecto

Há uns tempos, quando estava na praia com o meu filho e ele brincava com outros meninos houve uma senhora que se ofereceu para ir buscar gelados para todos e lhe perguntou se ele também queria. Quando respondi que ele não comia gelados a senhora fez uma cara de tristeza como se tivesse acabado de lhe dizer que ele sofria de algum tipo de doença terminal. Não me esqueci desta cara e foi um episódio que me deixou a pensar. Até porque não foi a primeira vez que vi aparecer esta expressão na cara das pessoas que acontece principalmente quando vamos a festas de anos em que os outros miúdos se empanturram alegremente com todo o tipo de porcarias.

Desde que me tornei vegan consegui também eliminar de vez o açúcar da minha alimentação e, sempre fiz questão, de que este não estivesse presente na alimentação do meu filho o que não quer dizer que lhe faltem doces. Antes pelo contrário até, porque há formas de se fazer doces sem usar açúcar. Nos primeiros tempos em que deixei o açúcar ainda usei algumas geleias de milho ou de arroz para o substituir mas depois percebi que estas também não são grande alternativa porque também acabam por ser um produto refinado com um alto índice glicémico (apesar de provavelmente não serem tão nocivos como o açúcar, principalmente do ponto de vista da dependência), mas percebi que a única forma verdadeiramente saudável de adoçar alguma coisa será com alimentos inteiros e não processados. Para isto uso muitas vezes tamaras (que de todos os frutos secos são os que têm o menor índice glicémico) ou bananas bem maduras, mas também já usei passas ou figos secos, por exemplo.

No entanto, sempre que vamos a alguma festa, apesar de eu fazer questão de levar quase sempre algum doce que saiba que ele gosta para que possa ter alguma coisa boa para comer, há sempre alguém que fica com muita pena dele porque "o menino coitadinho não come doces". Na verdade ele come bolos, gelados e bolachas - às vezes, se calhar, até demais - porque é possível comer isso tudo vegan e sem açúcar mas, para estas pessoas, isto não chega porque não conseguem perceber que a experiência dele é diferente da delas.

Quando alguém fica com pena do meu filho porque não pode comer gelados ou bolos ou chocolates a torto e a direito penso que essas pessoas não têm noção de que estão a usar um mecanismo que, em psicologia, se chama projecção. Este é um mecanismo de defesa que consiste em projectar os nossos pensamentos, sentimentos, emoções, medos ou desejos inconscientes, noutra pessoa para que não tenhamos de encará-los como nossos. Isto quer dizer que, muito provavelmente uma parte dessas pessoas também sente pena de não poder comer tudo o que gostaria, porque faz mal ou porque engorda ou porque simplesmente se reprimem por outro motivo qualquer e essa pena é projectada no outro que, neste caso, acontece ser o meu filho.

Nós criamos uma ligação afectiva com a comida de acordo com a nossa experiência. Por exemplo, se os nossos avós nos davam um chocolate sempre que os íamos visitar é muito natural que essa experiência de comer o chocolate fique associada ao prazer de estar com eles e de nos sentirmos bem-vindos e bem recebidos. Ou se os nossos pais nos costumavam levar de vez em quando a algum lado onde comíamos um bolo ou um gelado especial, também é muito natural que essa situação e esse prazer de estar com os nossos pais e de sentir que gostam de nós fique associado ao prazer de comer o gelado ou bolo. Porque muitas vezes usamos a comida para mostrar o nosso afecto pelos outros.

A experiência de comer e de ser alimentado está muito ligada ao acto de ser cuidado: quando somos bebés precisamos de ter alguém a cuidar de nós, a alimentar-nos. E com a amamentação temos também a nossa primeira experiência de unir a alimentação ao prazer: o prazer físico de sentir esse alimento precioso mas também o prazer psicológico de sentirmos a nossa mãe cuidar de nós, o conforto de sentir esse contacto físico que, para um bebé, é fundamental, essa presença quente e acolhedora que é tão importante para a sobrevivência de um bebé como a alimentação. Então desde as nossas primeiras experiências que a alimentação fica associada a carinho, a cuidado, a amor, a afecto. E por isso acaba sempre também por estar ligada a uma forma de expressar cuidado e carinho.

Quando uma criança vai visitar os avós, por exemplo, é muito comum que estes tenham vontade de expressar o seu carinho e cuidado dando-lhe algum tipo de doce. E, numa espécie de ciclo, vamos aprendendo a associar estes momentos em que nos sentimos acarinhados e cuidados com esses pequenos gestos e sabores.

Então essas pessoas que ficam muito incomodadas com o meu filho quando pensam que não come doces também é muito possível que estejam a projectar nele uma certa falta de se sentirem cuidadas, acarinhadas.

Por outro lado, também estamos de certo modo programados para gostar de coisas doces. Na nossa natureza o gosto pelo doce é um gosto inato, ou seja, não precisa de ser adquirido. Por razões de sobrevivência talvez, as crianças nascem já uma tendência inata para gostarem de coisas doces. Porque antigamente, muitas vezes, não era garantido que tivéssemos acesso a todas as calorias de que necessitamos para sobreviver e os doces, geralmente, são boas fontes calóricas, por isso era importante garantirmos que, sempre que possível, os ingeríamos. Até porque não havia tanto perigo de os ingerirmos em excesso, uma vez que não eram tão abundantes como hoje em dia.

Por outro lado, para além das calorias, quando pensamos em coisas que são naturalmente doces encontramos apenas as frutas e pouco mais. E, as frutas são de facto algo fundamental para a nossa sobrevivência, do ponto de vista das calorias mas também das vitaminas e de tudo o que nos fornecem. São dos poucos alimentos cuja ingestão é mesmo fundamental para uma boa saúde e por isso a natureza procurou encontrar forma de garantir que teríamos vontade de as comer. E, a grande maioria das crianças quando começa a comer come mais facilmente a fruta do que qualquer outra coisa, a não ser que lhes viciemos desde logo o paladar com papas que vêm já assustadoramente carregadas de açúcar. O próprio leite materno, geralmente, tem um sabor bastante adocicado.
Além disso quando uma coisa é doce é menos provável que esteja estragada - as coisas estragadas normalmente sabem a azedo - por isso também não deverá representar perigo para a nossa sobrevivência. 

Acontece que, hoje em dia, temos acesso a todo o tipo de alimentos que, antigamente só muito raramente se encontravam. O açúcar refinado que hoje encontramos com uma naturalidade assustadora na nossa alimentação é uma invenção relativamente recente e nunca foi comido em tão grandes quantidades como as que se ingerem vulgarmente hoje em dia. Há estudos que mostram que esta substância - não posso chamar-lhe alimento porque o açúcar refinado é composto apenas de calorias vazias, ou seja, não tem nenhum elemento útil para a saúde do corpo - pode ser tão viciante como a cocaína, activando as mesmas zonas do cérebro.
Há muitas pessoas que fazem questão de me dizer que um bocadinho de açúcar não faz mal nenhum. Aqui é preciso ter noção de que, se falamos de açúcar não refinado, pode até não fazer mal comer um pouco muito de vez em quando mas nunca com a regularidade com que hoje em dia se consome, sobretudo em crianças pequenas. Acontece que, ainda por cima, nem sequer é esse o açúcar que encontramos na grande maioria dos casos.

Mas, de qualquer modo, essa questão do açúcar acaba por se tornar secundária na medida em que a grande maioria dos doces que encontramos com facilidade não são vegans e por isso, voltamos à questão inicial de uma criança que não cresceu com essas experiências não fazer esse tipo de associação e por isso, aquilo que ele associa a esses momentos de carinho e cuidado são comidas muito diferentes que podem perfeitamente ser saudáveis.

terça-feira, 30 de setembro de 2014

Como tudo começou

Tornei-me vegetariana aos 19 anos sem pensar muito sobre o assunto. Porque simplesmente me deixou de parecer natural comer animais mortos. Durante quase 20 anos fui vegetariana e durante a maior parte desse tempo comprava ovos de galinhas criadas ao ar livre e iogurtes biológicos (leite e natas nunca comprei porque só usava de soja) acreditando nas imagens que nos vendem que mostram galinhas contentes a por ovos no campo e vacas felizes a darem leite como se isso fizesse parte da sua natureza.

Durante todo este tempo acreditei no que me vendiam e usava sapatos com pele de vaca porque pensava para comigo própria que as vacas eram mortas por causa da indústria da carne mesmo, por isso eu estava apenas a aproveitar aquilo que sobrava desse mercado. E, sempre que via uns sapatos ou umas botas de que gostava e a consciência me incomodava pensava que, de qualquer maneira, não tinha outra opção porque não havia outra escolha e precisava de andar calçada e também era importante usar alguma coisa que protegesse do frio e da chuva e, de qualquer maneira, ninguém matava as vacas só por causa da pele, elas já estavam mortas mesmo por causa da carne. E com estes pensamentos lá tentava anular a tal vozinha da minha consciência que me perguntava se as coisas seriam mesmo assim. E lá deixava que a essa voz da consciência se sobrepusesse a outra do desejo e da preguiça que queria ficar satisfeita com um par de sapatos bonitos encontrados já ali.

Quando o meu filho nasceu ainda acreditava na ideia que nos vendem de que o leite é essencial para o crescimento das crianças. E apesar de estar informada sobre os benefícios da amamentação e de o ter amamentado até ele próprio decidir parar ainda não tinha tomado consciência da incongruência de uma sociedade que reprova a amamentação de crianças mais crescidas mas encoraja que passem a beber leite de uma outra espécie. Até que o meu filho começou a comer papa. E como bons pais que éramos começámos a pôr-lhe uma colherzinha de leite em pó nas papas para que crescesse bem e com bons ossos. Biológico claro, porque as vacas dos pacotes de leite biológico têm um ar tão feliz e descansado. Acontece que a partir daí o meu filho começou a ter uma série de complicações de saúde: diarreias constantes com muco, barriga cada vez mais inchada, cada vez mais gases, refluxo, dores de barriga e, ele que nunca foi gordo, já nem sequer entrava nas tabelas dos percentis de tão magrinho que estava. E, apesar de sempre ter sido alto, houve um altura em que chegou mesmo a parar de crescer. Com tudo isto a médica apontava para doença celíaca. Mas, nós víamos que sempre que parávamos de lhe por leite na papa, as diarreias paravam.

Fizemos análises ao sangue que não revelaram nenhuma intolerância à lactose. Mas a verdade é que as diarreias com muco voltavam sempre que reintroduzíamos o leite. 
O meu marido já sabia que era intolerante aos lacticínios que já tinha deixado de consumir há algum tempo e, para nós, era cada vez mais claro que o nosso filho também o era. Assim comecei a pesquisar algumas coisas na internet sobre intolerância aos lacticínios. 
Uma das coisas que descobri foi que é relativamente comum que as análises não revelem a intolerância aos lacticínios, mesmo quando esta existe, porque a lactose no nosso organismo é transformada numa outra molécula e é essa que, muitas vezes, o corpo reage, mesmo que não reaja  à lactose propriamente dita. Este médico cardiologista explica isso, entre outras coisas importantes, neste video.

E atrás de umas coisas vieram outras. Lembro-me que ainda me foi difícil deixar de acreditar no mito do cálcio no leite de vaca que nos querem fazer querer que é tão essencial. Tinha medo de estar a privar o meu filho de algo que fosse realmente importante para a sua saúde. E era difícil calar essas vozes que diziam que o leite é essencial para as crianças. Mas quando comecei a ver que os dados eram inquestionáveis e que o leite que é essencial para o crescimento das crianças é o leite da sua própria espécie e não de uma outra com requisitos e necessidades nutricionais totalmente diferentes, então outras portas se abriram.

E a partir daí lembro-me que comecei a ver muitos vídeos na internet sobre a forma como as vacas são repetidamente violadas, para engravidarem e como lhes retiram os filhotes para que possam continuar a dar leite. Até essa altura acho que simplesmente pensava que as vacas davam leite porque sim. Porque era natural darem leite, como se a natureza as tivesse criado apenas para a nossa comodidade. E nunca me tinha perguntado o que é que era preciso para que continuassem a dar leite. 
Nessa altura, por acaso, estava também a ler a Cabana do Pai Tomás, um livro sobre a escravatura. E tornou-se tão claro que a forma como os escravos eram vistos e tratados é exactamente a forma como vemos os animais hoje em dia. Alguns donos de escravos até eram bonzinhos, até os tratavam bem, até lhes davam muita comida e um sítio não muito mau para dormir. Mas não deixavam de ser escravos. Nem todos pensavam que eram maus ou indignos, mas todos, quase todos sem excepção, os viam como uma raça inferior. Não sentiam o mesmo que nós, não pensavam como nós. Inclusivamente acreditava-se nessa altura que as mulheres escravas nem sofriam por aí além quando lhes tiravam os filhos. Porque estavam preparadas para isso. Porque não eram como as brancas. Exactamente o mesmo que nós pensamos dos animais hoje em dia. 
E lembro-me que, nesta altura, lia o livro, via vídeos na internet e chorava cada vez mais com esta tomada de consciência. E ainda tinha pesadelos à noite com vacas a sofrerem. Tocou-me especialmente o sofrimento das vacas porque tinha sido mãe há relativamente pouco tempo e por isso houve uma maior identificação com essa realidade.

E a partir daí decidi que não havia nada que me pudesse fazer voltar a ser cúmplice dessa indústria. E que queria educar o meu filho de forma a que ele percebesse que não temos o direito de nos sentir donos dos animais. Que não temos o direito de colocar os nossos gostos, preferências, comodidades e egoísmos à frente da vida de outros seres.

Hoje em dia, quando olho para trás, sinto-me como se tivesse saído de uma espécie de seita. Porque deixei de acreditar em tudo o que me foi dito, em tudo o que me foi incutido. Porque tive de reformular uma boa parte da minha visão do mundo e da vida. Porque tive de que deixar de fazer simplesmente o que todos faziam e tive que procurar soluções e alternativas que nem sempre são óbvias.

E, quando saímos de uma seita podemos sentir-nos um pouco sozinhos quando não encontramos outros que pensem como nós. Por isso mesmo resolvi criar este blog. Porque acredito no poder da internet para divulgar conhecimento e experiências e, porque, quando queremos deixar o caminho que é percorrido pela maioria, ajuda muito conhecermos a experiência de alguém que o fez antes de nós. Assim, esta é a minha partilha, a minha colaboração para tentar fazer deste um mundo verdadeiramente melhor para o meu filho e para todos os outros que nele habitam. 

Porque quero educar o meu filho como Vegan


Quando o meu filho nasceu muitas pessoas nos perguntaram se íamos impor as nossas escolhas alimentares à criança, com uma certa entoação de crítica, como se estivéssemos a forçá-lo a entrar em alguma seita maluca, estranha e vagamente suspeita ainda que não saibam bem de quê. A essas pessoas respondi sempre que, todas elas sem excepção, impuseram as suas escolhas aos filhos, tal como os meus pais me impuseram a mim e tal como é suposto fazermos normalmente com todas as nossas opções e valores que, naturalmente, vamos procurando transmitir à descendência. Ao que estas pessoas me respondiam  que era uma situação muito diferente porque as nossas opções, como pais, estariam a condenar o meu filho – pobre criança inocente – a uma vida inteira de diferença e exclusão que dificultariam muito o
seu convívio com as demais crianças. Ao que poderia responder que, nesse caso, o erro estava do lado da sociedade ou de quem o rejeitasse e não em nós ou nele. Mas, a verdade, é que este é um dos receios que toma conta de muitos pais de crianças vegetarianas ou vegans, principalmente quando chega a altura de irem para a escola. Em relação a este receio que, devo confessar, também me surgiu algumas vezes, aquilo que tenho a descobrir com o meu filho é que não tem grande razão de ser. Porque, como em tantas outras coisas, o mais importante é a base de confiança que criamos com os nossos filhos e que eles criam connosco. E, quando essa confiança existe, as crianças sentem-se seguras de si e das suas escolhas, mesmo quando sabem que são diferentes das dos outros. Já em diversas ocasiões, como festas de aniversário, por exemplo, o meu filho me mostrou que sabe que o que nós comemos é diferente daquilo que a maioria das pessoas come e isto para ele é tão tranquilo como saber que algumas pessoas gostam mais azul e outras de cor de rosa. Porque ainda o achamos pequeno para explicar aquilo que está por trás destas escolhas, por enquanto, limitamos-nos a dizer que algumas coisas não são vegans e que só comemos as que são e isto para ele é tão pacífico como explicar que os adultos bebem vinho e café, por exemplo, e as crianças não. Quando as crianças confiam nos pais e se sentem seguras do amor destes não precisam tanto de se sentir iguais ás outras, porque a identificação mais importante que precisam de criar, nestes primeiros anos de vida, é com os pais mesmo e não com as outras crianças. E, na verdade, sermos vegans até ajuda a criar uma identidade distinta, uma atmosfera de pertença e contribui para construção dessa identidade de família que é importante e essencial na construção da identidade individual. Claro que chegará a altura em que essa identidade de família não será suficiente, chegará a altura em que haverá uma necessidade do meu filho, como acontece com todos os outros, criar a sua identidade própria mas, antes de o fazer, ao explorar novas possibilidades é natural que tenha alguma tendência para se afastar dessa identidade da família, principalmente na adolescência. E, nessa altura, não me surpreende nada que tenha necessidade de se aventurar noutros mundos e quem sabe até de experimentar comer coisas que nunca tinha comido. Quando essa altura chegar a única coisa que poderemos fazer é continuar a dar-lhe a nossa aceitação incondicional e perceber que, todos os adolescentes passam por fases em que é natural questionarem as escolhas da família. Mesmo assim, espero que sejamos capazes de lhe transmitir que, mais do que uma escolha alimentar, o veganismo é uma forma de encarar a vida que passa por um valor fundamental: o respeito por todas as formas de vida e a crença fundamental de que os animais têm de ser tratados com o mesmo respeito que tratamos as pessoas, nem mais nem memos, o mesmo respeito com que tratamos as pessoas, sim.

É por isto que quero que o meu filho cresça como vegan, porque quero que, para ele, esse respeito seja uma realidade e não apenas um conceito vago, confuso e contraditório como foi na minha cabeça durante tantos anos. Porque todos os pais ensinam os filhos a gostar dos animais, porque todos os pais gostam que os filhos tratem bem os animais, porque todos os pais têm dificuldade em explicar aos filhos que o que têm nos pratos já foi um animal, um ser com sentimentos, emoções e tão merecedor da vida como qualquer um de nós. Porque todas as crianças têm uma altura em que percebem essa contradição e a única forma de viverem com ela é fecharem uma parte de si, fecharem a parte de si que sabe que todos os seres são dignos de amor e respeito, fecharem a parte de si que sabe que não é certo causar dor e sofrimento apenas para a nossa conveniência. Porque qualquer criança sofre quando vê um animal a ser mal tratado, todos conhecemos histórias de crianças que se recusaram a comer um coelho ou uma galinha que viram ser morta por algúem. Porque as crianças nascem com essa capacidade de sentir empatia, com essa vontade de não causar sofrimento. Mas, com o tempo e com a nossa ajuda e os nossos argumentos vão percebendo que não podem dar-se ao luxo de manter essa empatia, porque senão não poderiam comer animais todos os dias. Vão começando a perceber que não podem ouvir essa parte de si, porque nós as convencemos que ela não está certa, que não é de fiar, que não podem dar-lhe ouvidos. Como alguém disse num vídeo que vi no youtube, todos gostamos de crianças que gostam dos animais e ficamos muito comovidos quando elas os defendem - como no vídeo do menimo brasileiro que não queria comer polvo, que correu o mundo, foi visto por mais de três milhões de pessoas e até acabou por ser entrevistado no programa da Helen Degeneres (ver aqui o vídeo) - mas achamos todos um bocado suspeito um adulto que tenha a mesma atitude. Porque, nós adultos, a maior parte das vezes, já silenciámos esse nosso lado sensível, preocupado, empático.
Então, eu não quero que o meu filho seja obrigado a perder esse lado criança, não quero que ele passe a encarar uma vaca como menos digna que um cão, ou um porco como menos sensível que um gato. Não quero que ele perca essa sua natureza fundamental, que é a de todos nós, de respeitar, admirar e proteger a vida, em todas as suas formas. Porque quando essas partes de nós se fecham não sabemos que mais é que seremos obrigados a fechar. Porque acredito que o respeito pela vida é o caminho para vivermos em paz com os animais mas também com os humanos, com a natureza, com o planeta. Porque uma criança que cresce a respeitar os animais também respeitará as pessoas. Porque uma criança que cresce sentindo valorizado o seu respeito pelos animais também se aprende a respeitar a si mesma.
E, sim tenho noção de que ser diferente nem sempre é fácil. Mas também tenho noção de que não sermos fieis a nós mesmos e à nossa natureza é ainda mais difícil. E também tenho noção de que a aceitação mais importante ele encontra primeiro em casa, com o pai e com a mãe e depois consigo mesmo, crescendo num ambiente de aceitação, de acolhimento e de respeito. Respeito que, muita gente nos pergunta, não implica deixá-lo comer carne um dia quando quiser? Implica deixá-lo comer o que quiser, sim, quando quiser. Mas apenas quando tiver maturidade suficiente para saber o que isso implica. Porque o nosso caminho não tem a ver com proibições ou imposições, como tanta gente julga, mas tem tudo a ver com consciência e respeito. E, para podermos respeitar as escolhas dos outros, temos que saber que, antes de mais nada, eles as fazem com consciência e não porque apenas decidiram fazer o que toda a gente faz. Não posso respeitar uma escolha que é fruto do conformismo e de queremos apenas fazer o que todos fazem porque essa não é uma verdadeira escolha. Uma verdadeira escolha implica ter noção das consequências dos nossos actos, consequências que uma criança de 2, 3 ou 4 anos ainda não tem noção para compreender. E não sei quando terá. Depende de cada criança e depende de cada pai ou mãe, só o tempo o dirá. Também não deixamos os nossos filhos beber alcoól antes de termos a certeza que compreendem o que isso implica, porque é que isto haverá de ser assim tão diferente? Só porque mexe com as tais partes de nós, que todos temos, que sabem que, no fundo a nossa escolha nunca existiu, limitámos- nos a fazer o que todos os outros faziam e a silenciar o nosso lado empático e capaz de ver o sofrimento que as nossas não escolhas provocam. 
Porque, como disse Paul McCartney, se os matadouros tivessem paredes de vidro, todos seríamos vegetarianos.

E, para quem duvida desta frase fica um desafio: deixo aqui o link de um documentário que pode ajudar a mudar consciências, o Earthlings, veja-o até ao final. Só conhecendo tudo aquilo que está envolvido nas nossas escolhas e as suas consequências é que podemos afirmar que realmente escolhemos em liberdade. Ver aqui o filme