quarta-feira, 29 de abril de 2015

Liberdade e coração

Hoje vi o vídeo de um conhecido apresentador de televisão a entrevistar uma convidada, no seu programa, que iria falar sobre alimentação vegetariana. Infelizmente não lhe foi possível falar muito porque foi constantemente interrompida com observações e comentários mesmo que nem sempre viessem muito a propósito. Fico feliz quando vejo que alguém consegue ter uma discussão válida e aberta sobre vegetarianismo ou sobre veganismo e ainda mais quando há uma possibilidade de que essa discussão chegue a muitas pessoas através da televisão. Mas, embora não tenha sido de todo isto que se passou neste caso, este programa deixou-me a pensar em algumas questões importantes.

Por um lado a primeira coisa em que pensei foi no discurso de muitas pessoas, discurso que eu própria já usei algumas vezes, de que cada um tem o direito de fazer as suas opções e de comer o que bem entender. É verdade que não posso obrigar ninguém a parar de comer animais e os seus derivados mas também é verdade que me sinto com cada vez menos tolerância para a questão das opções e das liberdades individuais de cada um, aplicadas a este caso.

Na verdade, desde que o meu filho nasceu que isto sempre foi algo que me foi apontado: o facto de, para muitas pessoas, as minhas escolhas estarem, supostamente a interferir com a liberdade dele. Claro que isso não faz sentido nenhum, uma vez que ninguém dá às crianças assim tanta liberdade ao ponto de as deixar escolher sempre aquilo que querem comer, ou fazer ou até vestir. Mas, independentemente desse argumento de que todos nós fazemos alguma questão de que os nossos filhos herdem e mantenham os nossos valores, a verdade é que comer ou vestir animais não são uma escolha e uma opção individual como tanto nos querem fazer querer. 

Se eu escolher encher-me de pão ou de açúcar ou de alcoól ou drogas, aí é uma escolha minha, sim. E, mesmo assim nem sempre, porque a sociedade também não permite consumir livremente heroína ou cocaína e os menores, hoje em dia, também não podem comprar álcool. Mas, na verdade, estas escolhas só afectam realmente quem as faz. Podem influenciar de forma mais indirecta as pessoas que lhes estão próximas, é claro e o mal que algumas coisas fazem à saúde também acaba por ter algum peso no sistema de saúde que, sendo público, acaba também por ser pago por nós. Mas, de forma directa, estas opções só afectam mesmo quem as faz.

Mas comer animais não afecta apenas quem os come. Para eu ter o direito de comer um animal, há um ser, ou vários, que precisam de morrer. E antes de morrer precisam de toda uma vida de sofrimento e escravidão. Então como é que isto pode ser considerado apenas uma opção individual?! Não há nada de individual aqui. Além de que, está mais do que demonstrado, que o consumo de alimentos de origem animal está a destruir o planeta e a ter consequências devastadoras, o que significa também que, cada vez que comemos um bife estamos a dar uma forte contribuição para que se esgotem todos os recursos do planeta e para que o mundo que os nossos filhos poderiam herdar passe a ter sérias possibilidades de deixar de existir. Então, gastar milhares de litros de água para comer um simples hambúrguer num planeta onde a água é um recurso cada vez mais escasso e onde tantas pessoa não têm o que comer porque gastam os seus recursos a alimentar gado que, depois é exportado para países mais ricos, também não será propriamente uma opção individual já que prejudica e coloca mesmo a vida de tantas outras pessoas em risco. 

Por isso acho que é importante termos coragem de parar com este discurso politicamente correcto de que são apenas opções e precisam de ser respeitadas como tal. Porque já diz o ditado a minha liberdade acaba onde começa a liberdade do outro e os animais têm todo o direito de começar a ter também alguma liberdade. Já que até a ciência os passou a reconhecer como seres conscientes e merecedores de todo o respeito como o próprio título deste artigo demonstra: Não é mais possível dizer que não sabíamos

Outra coisa que me deixou a pensar neste programa foi a distância que ainda existe entre o coração e a cabeça de algumas pessoas. A certa altura o apresentador do programa dizia que sabe ser uma crueldade comer lagostas vivas mas que elas sabem tão bem que não resiste a fazê-lo. Realmente ninguém, no seu juízo perfeito, poderá negar que a indústria de produtos animais é cruel e desumana. Mas a verdade é que, para muitas pessoas, isso não é suficientemente importante quando comparado com o prazer que sentem ao comer esses animais. Isto significa que, racionalmente, as pessoas até sabem que é cruel e racionalmente, hoje em dia, também se torna cada vez mais fácil demonstrar que podemos viver com muito mais saúde se não consumirmos produtos animais.

Mas o problema é que o racional só não chega. Não é suficiente percebermos algo do ponto de vista intelectual, é preciso senti-lo também. O argumento da saúde é um dos que leva muitas pessoas a deixarem de comer carne, por exemplo e esta é uma decisão racional já que tudo indica que o excesso de carne nas dietas ocidentais é responsável por várias doenças, desde o cancro aos acidentes cardiovasculares. Conheço algumas pessoas que me dizem que comem cada vez menos carne e outras que me contam que já deixaram de beber leite, porque também perceberam o mal que faz à saúde. Mas estas pessoas quase nunca cortam a 100% com estes produtos, porque foi uma decisão racional e e, na verdade, se é apenas uma questão de saúde, comer carne ou queijo uma vez de x em x meses, não irá ter grande peso. Mas, quando se trata de uma questão de valores, cada vida é importante e não passa pela cabeça de ninguém dizer que vai dar um tiro em alguém só de vez em quando, ou que se bater em alguém só de vez em quando isso não fará muito mal.

Então, o que é importante é perceber porque é que é tão difícil fazermos esta ligação do racional com o coração. 

Jonathan Haidt, psicólogo americano, dedicou-se a estudar a área da psicologia moral e, este autor, defende que as nossas escolhas começam sempre nas emoções e, só depois, encontramos uma explicação racional para justificar o que escolhemos. Então é mesmo importante estarmos mais ligados às emoções e sobretudo permitirmos-nos sentir as consequências das nossas escolhas e opções. Ele explica que é possível ver que é no hemisfério direito - que está mais associado às emoções - que as decisões são tomadas, em primeiro lugar. Só depois da decisão estar tomada, algo que acontece de forma rápida e quase inconsciente, é que o hemisfério esquerdo - responsável pelo pensamento mais racional e analítico - entra em funcionamento tentando justificar a escolha que foi feita e procurando razões para o facto dela existir.

Por isso este autor explica que quando queremos que alguém mude a sua ideologia ou a sua posição em relação a um determinado tema não adianta muito usar argumentos racionais. Porque o mais importante é sermos capazes de falar com o hemisfério direito da pessoa, ou seja, com a parte mais ligada às emoções e, mais do que isso, sermos capazes de comunicar com o seu inconsciente. Já que é aqui que as decisões são verdadeiramente tomadas.

Acredito que é por isto que muitas pessoas que comem animais, como aconteceu neste programa, sentem necessidade de denegrir ou de atacar alguém que já deixou de o fazer: porque, em alguma parte de si, sabem que este comportamento é errado, que não está de acordo com as suas emoções. Em alguma parte de si, estas pessoas, sentem a incongruência de saberem que as suas emoções não estão de acordo com a razão. E isso torna-as mais agressivas até, por vontade de se dissociarem dessa sensação desconfortável. E, muitas vezes isto faz-se através de um mecanismo que, em psicologia se chama projecção: acreditar que é no outro que está a fonte de desconforto quando, na realidade, ela está mesmo dentro de si. Por isso quando alguém está a fazer troça de um vegan ou está simplesmente a atacar as suas posições, na verdade, o que essa pessoa está mesmo a mostrar é que se sente muito desconfortável consigo própria e com as incongruências que ainda não sabe como resolver.

Porque acredito que a grande maioria das pessoas sabe distinguir o certo do errado, a grande maioria das pessoas não seria capaz de viver com a consciência dos maus tratos e dureza que fazem parte da indústria animal e continuar a consumir esses produtos como se nada fosse.

Mas também acredito que a maioria das pessoas ainda não sabe como dar voz a essas emoções. Porque sempre que elas tentam espreitar surgem os medos, os medos de acreditar em algo diferente de tudo que defendíamos, o medo de por em causa tudo aquilo que tínhamos como certezas, os medos de fazer algo diferente do que fazem todos os outros, do que sempre fizeram os nossos pais, os medos de termos que abdicar do prazer, de ter trabalho, de não saber o que fazer, de não conhecer alternativas, o medo de ser diferente. Até o medo de se escutarem a si próprias, se seguirem o seu coração e as suas emoções. E estes medos podem ser tão fortes que paralisam e impedem a pessoa de fazer uma verdadeira escuta interior.

Desde que o meu filho nasceu que me apercebo ainda mais de como o medo de se ser diferente está tão enraizado. Quando era mais pequeno o medo das pessoas era o de como seria quando ele fosse para a escola, como seria quando percebesse que era o único vegan, como seria quando os amigos percebessem que ele comia coisas diferentes. E acredito que este medo de ser diferente contribui muito para que muitas pessoas tenham medo de se escutar, de ouvir o seu coração e a sua consciência.

Porque não acredito que nenhum coração, que nenhuma consciência goste de ver o sangue na sua mesa e nos pratos diariamente.

A verdade é que, como Melanie Joy, explica tão bem, o sistema do carnismo está feito de forma a que as pessoas não precisem de ouvir a sua coração ou a sua consciência porque, na verdade, todo o sofrimento animal fica escondido e não precisamos de o enfrentar verdadeiramente quando vamos ao supermercado buscar um bife ou um pacote de leite.

Mas as redes sociais e a internet têm ajudado a tornar esse sofrimento cada vez mais real e mais presente. E, a partir do momento em que somos capazes de fazer essa ligação entre o sangue e o sofrimento que estão por trás de um simples pacote de leite do supermercado nunca mais conseguimos esquecê-la.

Muitas das pessoas que se tornaram veganas fizeram-no através de um processo de sofrimento, porque foi preciso ouvirem essa voz dentro delas, foi preciso deixarem o coração falar e, ao entrarem em contacto com essas emoções ficaram também vulneráveis a todo o sofrimento que existe no mundo do consumo animal e a todo o sofrimento que, inconscientemente, também provocaram durante anos. Este não é um processo fácil, porque implica sermos capazes de lidar com essa culpa de saber que também nós fomos cúmplices disso durante tantos anos e sermos capazes também de lidar com essa nova realidade. Implica sermos capazes de olhar para um bife, para um pacote de leite e não vermos só a embalagem mas todo o sofrimento que a tornou possível. E dói tomar contacto com essa realidade. Mas é da vulnerabilidade que vem também a força. A força de nos sentirmos, finalmente, em coerência com os nossos valores. A força de nos sabermos capazes de defender os nossos ideais e também a responsabilidade de saber que não podemos ignorar esse sofrimento. A responsabilidade de saber que, a partir do momento em que tomamos conhecimento dessa realidade, não podemos voltar atrás e não podemos continuar de braços cruzados como se nada se passasse. Por isso é que tantos vegans se tornam também activistas, por sentirem que precisam de dar o seu contributo para acabar com o sofrimento animal, por sentirem que não podem continuar a ser cúmplices passivos desse sofrimento.

Não é porque somos ditadores e queremos que todos pensem como nós. É apenas porque gostávamos muito que todos pudéssemos viver num mundo melhor. Eu gostava que o meu filho pudesse viver num mundo onde não se torturassem touros por prazer, onde não se gostasse do sabor do sangue e da morte. Onde as pessoas não se achassem superiores a todos os outros seres e se sentissem no direito de matar e torturar em nome do prazer ou das suas comodidades. Gostava que o meu filho crescesse num mundo onde as pessoas se preocupassem com o planeta, com os seus recursos porque isso também significa preocuparmos-nos com os animais e com as outras pessoas. Acredito que se fôssemos capazes de viver em paz com os animais, se fossemos capazes de parar de os torturar em nome do nosso comodismo e de os reconhecer como seres dignos e merecedores de respeito e consideração, também seríamos capazes de viver muito melhor com as outras pessoas. Porque perceberíamos finalmente que todos somos habitantes desta terra e que todos temos o direito de estar vivos e de não ser mal tratados, atacados ou abusados. Porque só quando percebermos que uma pessoa não vale mais que um cão e que um cão não vale mais que uma vaca, que uma galinha ou um porco é que poderemos estar prontos para viver verdadeiramente em harmonia com o que nos rodeia.

E não acredito que tenhamos a opção de escolher comer ou vestir animais apenas porque queremos acreditar numa falsa liberdade. Assim como a guerra não é uma escolha individual, assim como eu não tenho o direito de escolher matar, torturar ou violar outro ser humano apenas porque me apeteceu, me deu jeito ou me fazia falta, também não o tenho direito de o fazer com os animais.

4 comentários:

  1. obrigada, Laura, pela lucidez das tuas palavras.

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  2. Grata pelo texto!
    Eu como tenho uma abordagem mais espiritual e ai está com algumas crenças, acredito que tudo decorre como deveria decorrer e que os animais vêem ao planeta se sacrificar por nós.

    Não concordo com a forma como os animais sao criados e todo o seu sofrimento, toda a parte de nao ser sustentavel. Também penso nos meus miudos e seu futuro. E por um conjunto de razoes pessoais tambem estou a mudar minha alimentaçao e forma de viver.
    Para mim faz a alimentação que faz mais sentido é a alimentaçao frugivora. Apesar de acreditar que nós humanos podemos nos alimentar apenas do prana, sem consumo de animais, vegetais ou agua!

    Contudo no outro dia numa pagina vegana quando alguém sugeriu viver do prana, foi logo bombardeada psicologicamente da mesma forma que esse dito apresentador fez, aliás havia comentarios a afirmar isso ser impossivel!....Portanto estas limitaçoes sao sobre as emoçoes dos carnivoros, vegetarianos, vegans e ate frugivoros......

    Podemos mudar o mundo, mudando-nos a nós e nosso redor e voce esta no caminho certo. Penso que passara por ai....

    Os outros despertarão quando assim tiver de ser, provavelmente mais rapidamente agora porque existem pessoas como você.
    Olhe á sua volta a mudança ja começou.

    (pensei mais de 20 vezes se deveria postar a minha opiniao...ai esta"medo" de ser diferente)
    bjos

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  3. Mais uma vez... palavras mais do que perfeitas! Obrigada Laura!

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